sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Quatro e um quarto

- Que barulho foi esse?

- Não sei... - responde Luca desinteressado.

- Vá ver, Luca – ordena Cauê.

- Vá você, oras! Não vê que eu estou colando figurinha?

‘O que custa ele ir? Eu estou sempre fazendo coisas que ele manda!’ - pensa Luca, envolvido com os cromos de futebol.

Vencido pela curiosidade, Cauê não vê outro remédio a não ser ir ele mesmo para a janela.

- Nossa mãe! Caramba!

O irmão menor se interessa e corre para onde está Cauê.

- Está vendo, Luca?

- Puxa vida! Que confusão! – comenta o menor.

- Zezé! Lica! Venham ver! – chama Cauê

As meninas brincam de casinha: Zezé penteia a boneca enquanto Lica arruma os pratinhos na minúscula mesa de uma sala de jantar, como uma boa dona de casa.

- Que foi, Cauê? – Lica voltada para a casinha.

- Vem logo! Vocês estão perdendo!

Em instantes os quatro estão pendurados na janela de cima do sobrado.

Lá fora a tarde está manchada de cinza, com cara de chuva. No meio da rua, há um amontoado de gente grande se comprimindo, conversando, gesticulando, olhando pro chão.

‘Não consigo ver nada! Quem será?’ Cauê busca melhor posição para observar.

O transito está parado. Buzinas soam em desarmonia.

- Caramba! Quanta gente! – soa uma vozinha feminina.

- Sei lá, Lica. Não dá pra saber. Está cheio de gente! Acho que alguém caiu, se machucou... - Luca cogita.

- Machucou? - pergunta Zezé com a boneca embaixo do braço. Não espera resposta; volta-se para a sua boneca:

– Às vezes a gente pode tropeçar, bater a cabeça..., não é Suzy? Mamãe cuida de você, viu? Não vai deixar você cair na rua não! – faz carinho na cabeça da filhinha.

- Não é nada disso, Zezé. Aconteceu alguma coisa... – Cauê presta atenção; os seus olhos buscam abrir espaço entre as pessoas para ver quem está no chão.

O burburinho continua.

Uma sirene vem aumentando o volume cada vez mais.

- Está chegando a polícia! – alguém diz.

‘Agora sim, agora sim!’ - Cauê suspira animado.

A aglomeração humana se movimenta lentamente, como um bicho, oferecendo resistência aos guardas, não querendo sair dali. Empurrando, os policiais vão abrindo caminho, rompendo o cerco. - Para trás, para trás...

As crianças observam a movimentação. Cauê não tira os olhos da rua.

O burburinho cessa aos poucos e o silêncio até então escondido cresce e se impõe.

Os dois guardas estão abaixados, examinando. Quando se levantam, as crianças já podem ver.

Paulinho vira o rosto como se tivesse levado uma bofetada.

Luca fica imóvel, com o olhar parado e a boca aberta. Em sua mão, a figurinha é esmagada.

Zezé abraça a boneca com força.

Lica... Onde está Lica?

Lica está estirada na cama choramingando. Está de bruços, com a cabeça enfiada na colcha. Quase nem dá para ouvir o chorinho sufocado.

- Não acredito, Cauê. Hoje mesmo eu a vi lá na frente do estacionamento. E agora acontece isso! – a cabeça de Luca pende.

‘Que droga!’ Cauê chuta a almofada jogada no chão voltando para dentro do quarto bagunçado.

Aos poucos, os quatro voltam para os seus lugares: Cauê joga play station, Luca tenta desamassar a figurinha alisando-a várias vezes com a mão.

Zezé e Lica, do outro lado do quarto, retomam os afazeres domésticos: Lica arruma a mesa da sala de jantar enquanto Zezé passa a sua escova no cabelo da filhinha.

As crianças estão tristes e silenciosas.

Zezé enxuga uma última lágrima perdida no rosto.

O relógio marca 16:15 horas.


neorubens

Pequenos professores

Renato despertou sobressaltado. Havia muito, ele se sentia deprimido e infeliz e nada o fazia ter vontade de viver. A vida havia lhe reservado muitos dissabores, levando cedo demais aqueles a quem ele mais amava. Ele sofria sua ausência e agora eles estavam ali, tão presentes, num sonho longo do qual ele despertava agora. Por alguns momentos ele teve sérias dúvidas; aquilo tudo parecia tão real e presente, não poderia ter sido só um sonho. Eles estavam todos ali, reunidos e o abraçavam de uma forma tão terna que ele ainda podia sentir o calor do abraço. Ele guardava ainda meio zonzo a sensação do intenso amor que brotou de seu peito naquela hora, quando se abraçaram. Eles o beijavam calmamente na face, seus rostos eram luminosos e serenos. Renato não cansava de repetir que sentia muita saudade e eles diziam que também sentiam, pois o amor que os ligava era muito grande. Ele quase podia sentir o calor de seus corpos e trazia ainda fresco na memória o sorriso manso de cada um deles: a paz que ele sentia era infinita, o prazer indescritível. Ele estava ainda extasiado por aquela deliciosa sensação quando se lembrou que eles lhe diziam que estavam bem, mas que apenas uma pequena coisa os desagradava: vê-lo sofrer tanto pela sua ausência. Lembre-se – diziam – que você vive e ainda restam ao seu lado muitos que merecem pelo menos uma parte de todo esse amor que nós sabemos que você é capaz de oferecer, pois já pudemos senti-lo.

                Ele respirou fundo, encheu o peito, levantou-se e, com o corpo ereto e cheio de uma dignidade e de uma altivez que já não vinha experimentando há muito tempo, caminhou até o banheiro e encarou sua imagem no espelho. O homem que ele viu não foi o mesmo dos dias anteriores. Uma nova luz brotava de seus olhos, agora iluminados e transformados pela sensação que ele trazia daquele encontro.  Algo nele havia mudado, e muito. Ele barbeou-se, vestiu-se com apuro e foi para o trabalho, ansioso por encontrar alguém para quem pudesse contar a experiência. Ele se sentia feliz, uma sensação que quase já nem lembrava mais como era.

                Quando Renato ia chegando à porta de sua empresa, algo ofuscou aquele seu estado de felicidade momentânea. Ele viu um grupo de pessoas reunidas na calçada, consternadas, e quis saber o que estava acontecendo. Um de seus funcionários lhe apontou uma criança do outro lado da rua, uma criança da vizinhança, que ele conhecia, mas que nunca havia lhe despertado o interesse. Aquela criança estava órfã, totalmente só no mundo. Ela, seus pais e dois irmãos tinham sofrido um acidente, do qual apenas ela tinha sobrevivido. Sem qualquer outro parente que tivesse restado, ela estava sendo agora encaminhada para uma instituição. Ele ficou sem entender os desígnios do céu: por que, afinal, justamente no dia em que ele reencontrava um pouco da sua felicidade perdida, deparava-se com tamanho sofrimento, por parte de alguém tão pequeno que talvez não tivesse ombros para suportá-lo?

                Algum tempo se passou e aquilo não saiu da cabeça de Renato. Quando o Natal se aproximou, ele quis saber para onde aquela criança órfã tinha sido encaminhada. Sem saber muito bem por que, Renato resolveu lhe fazer uma visita para levar um presente de Natal que talvez pudesse colocar novamente um sorriso em seu rosto, que talvez pudesse fazê-la esquecer por um momento que estava tão só no mundo.  Afinal, ele sabia o que era se sentir só. Ao chegar lá, encontrou não só o par de olhinhos que ele procurava, mas dezenas de pares de olhinhos esperançosos de que alguém tivesse se lembrado delas no Natal. Ele não teve dúvidas: voltou lá mais uma vez com presentes para todas as crianças e a partir de então passou a visitá-las regularmente, encontrando nelas um destino para o seu amor que, durante tanto tempo, tinha ficado adormecido. Ele conversava com as crianças e com as pessoas que cuidavam delas e foi assim que ficou conhecendo muitas histórias difíceis. Mas ele também via em todos aqueles rostos uma semente de esperança, apesar de todo o sofrimento. Aqueles pequenos eram lutadores incansáveis e não desistiam jamais. Muitas vezes teve a felicidade de ver crianças que saíam dali felizes, tendo seus sonhos concretizados, conseguindo uma nova família. E ele percebeu e aprendeu que elas não apenas ganhavam a felicidade de ter um novo lar, como também levavam a felicidade para pais que desejavam muito ter filhos, que tinham muito amor a oferecer.  

                Renato descobriu naquelas crianças a força de gente que tinha todas as razões do mundo para chorar, mas que ainda assim, sorria. E descobriu que o ato de sorrir mudava tudo, que a esperança as impelia a viver. E ali ele passou a distribuir o seu amor, entendendo através desses pequenos grandes professores sorridentes que o nosso amor não precisa ser destinado apenas àqueles que se ligam a nós por laços de sangue, mas também pode se estender a todos os que estão ligados a nós por laços de vida. Ele descobriu que se olharmos à nossa volta, veremos que há muita gente que necessita desse amor e dessa atenção.  Sua vida mudou. Ele sabia que agora fazia felizes aqueles que estavam aqui neste mundo e também aqueles que haviam partido. Entendeu finalmente a razão da visita de seus entes queridos naquela noite, pedindo que ele não chorasse a sua ausência e não se esquecesse de que ainda havia muita gente por aqui que precisava do seu amor.

                Hoje, a cada novo dia, ele agradece por estar vivo e por ter a chance de fazer felizes aquelas pessoas. Ele se vê no espelho e olha com orgulho para seus olhos ali refletidos, hoje luminosos. Ele sente que sua vida vale muito e que ele pode fazer a diferença. Ele sabe que ali, diante dele, está alguém capaz de mudar a vida de muita gente, de fazer o bem a outras pessoas, apenas pelo fato de estar vivo.

Chris 

A SOLIDÃO

A solidão que tanto atormenta e sacrifica as pessoas no mundo aerodynamico e moderno e espacial em que vivemos, com certeza se refere a todos, sem excessao, pois e a causa principal que muitas companhias e empresas que se envolvem com este tema, e procuram aproveitar e tirar lucros de uma situacao onde o homem em geral, se constitui ao mesmo tempo em argumento e objeto de estudos e pesquisas sociais
As empresas de casamento e relacao pessoal se expandem como se fossem jornaleiros...prometendo uma vida melhor e sem solidao, uma vida mais suportavel onde prometem que encontraras a pessoa ideal para toda a sua vida, em torno, fazes uma inscricao e pagas uma parcela, e cada mes uma mensalidade...por intermedio de computador dizem que vao encontar a mulher ideal...como se fosse comprar arroz...ou feijao...no supermarket...
Eles esquecem que o assunto e a materia principal e o sentimento...e isto nao se encontra no computador...mas sim nas relacoes simples e quotidianas, onde se expressa pessoalmente nossos problemas, pensamentos e ansiedades com reais pretencoes e avaliacoes, o coracao esta aberto e o sentimento esta exposto no ar...
Com certeza muitos de nos ja tivemos a experiencia onde um desconhecido nos dirige a palavra, como se nos conhecesse, como se fosse nosso amigo de ha muito tempo, as vezes, perguntando coisas banais e ate sem sentido, mas na realidade e a necessidade dele de querer conversar com alguem, de se expressar, e de sentir o calor humano, e claro que as vezes nos espantamos e temos ate medo e utilizamos uma mascara, e fingindo nao entender a sua solidao e passando rapido par o outro lado da rua...minutos mais tarde, entao entendemos que a nossa praxis nao foi a melhor possivel, mas ja e tarde...ja cometimos o engano...e depois outro e outro....e o fulano e beltrano...continua na completa solidao, imitando a nos mesmos, os quais tambem sentimos bem profundo a solidao que nos encarcera(carandiru) e nos faz misanthropos(aqueles que odeiam aos outros homens), sem ao mesmo termos percebido a nossa mudanca interior e exterior, a qual com certeza nos afasta ainda mais da possibilidade de ser feliz...

Apostolis

Feriado

Acordei satisfeito por perceber que não iria trabalhar hoje, afinal... feriado em São Bernardo do Campo. Santo padroeiro, valei-me! Poderia dormir até um pouco mais tarde e curtir São Paulo - coisa há muito não feita - no meio de uma semana. Penso com os meus botões que, afinal, sendo uma 4ª feira, todos devem estar trabalhando. Logo, a cidade deveria estar toda disponível para mim: poderia ir para onde quiser, fazer o que quiser, tudo estaria livre. O filme recém lançado e que nos três últimos finais de semana, as filas às portas dos cinemas onde está sendo passado me proibiram de assisti-lo, de hoje não me escapa.
Tomo um banho demorado. Curto por antecipação uma metrópole só minha. Hoje sou o rei de São Paulo. Mas que Kassab, que nada! hoje o rei sou eu. Escolho uma roupa esporte, condizente com o meu feriado. Olho no espelho. Analiso sem ser muito crítico. Ela não combinaria com uma quarta feira normal, mas com hoje - uma quarta-feira mais gorda que a de Cinzas - sim. Às 10 horas saio de casa.
Raios!! Logo na primeira avenida que vou cruzar, o trânsito está parado. Deve ser um acidente ali adiante, logo após aquela tão desastrosa curva. Ontem pela manhã, quando passei por ali, havia ocorrido um atropelamento. Eu preciso me lembrar de fazer um abaixo assinado, pedindo à prefeitura para que um semáforo - ou ao menos uma lombada - seja colocado naquele ponto. Está certo que seria um ponto de estrangulamento, mas afinal é só um. Não deve atrapalhar tanto assim. Após diversas acelerações e brecadas, e alguns minutos não tão desesperados - afinal é o meu dia de rei - consigo atravessar a avenida. Lanço um olhar na direção da curva para tentar enxergar o motivo do congestionamento - tenho certeza que é um acidente - e não consigo perceber nada. Sigo em frente... até parar três quadras adiante. Novo acidente. Tenho certeza.
Hora e meia depois, chego ao Shopping Center. Custo a conseguir entrar no estacionamento - só entrar. Primeiro piso: nenhuma vaga; segundo piso: nenhuma vaga; terceiro piso: ôpa! uma vaga... acabo por cedê-la a uma senhora muito bem vestida - na verdade uma perua - que, mesmo chegando depois de mim, suplica por estacionar o seu carro importado. Sigo em frente. Ou melhor, acima. Terceiro piso: nenhuma vaga. O mesmo no quarto e no quinto. No sexto, a única vaga disponível era a última do corredor - literalmente a última do estacionamento. Tenho certeza de haver cruzado com tantos carros descendo. Onde estarão as vagas abandonadas por eles? Quase que esta maratona me tira do sério, mas é o meu dia. Eu devo curti-lo... Saio do carro e sigo em direção ao elevador. Uma pequena fila está esperando por este pequeno componente escapado do inferno de Dante. Permaneço parado na fila, quando só então percebo que a chave do carro não está no meu bolso. Dou um sorriso amarelo para as pessoas à minha volta, sim, porque a fila dos elevadores públicos têm a mesma organização do caos descrito pelos antigos filósofos (tenho certeza que aquela descrição feita por eles foi baseada em um sonho que os trouxe através dos séculos). Faço o trajeto de volta ao carro olhando com cuidado por onde passei - é impossível que o chaveiro tenha corrido para baixo de algum carro - e, claro, as chaves jaziam estáticas penduradas no contato do meu carro (eu poderia jurar que o havia trancado). Fosse eu um ladrão, teria aberto o carro mais rápido do que qualquer um com a chave na mão. Mas não: eu era apenas o dono do carro, aquele ser, que se qualquer inteligência tivesse, perceberia a sua autonomia naquele momento e fugiria de mim. Ou será que ele era tão inteligente para saber que sair dali naquele momento, seria enfrentar um megalômano congestionamento, para onde quer que ele quisesse ir - ou melhor, não ir.
Chamo um guarda do estacionamento - após procurá-lo por um tempo, que me pareceu não ter fim - e explico a situação. Ele faz cara de poucos amigos. Percebo que a minha roupa destoava do que ele entendia como uma pessoa distinta, afinal, quarta feira é dia de sujeitos honestos usarem terno e gravata e não calça jeans, tênis e camiseta. Mostro meus documentos, que parecem não convencê-lo. Ele os analisa como um especialista em falsificações. Após provar a autenticidade, se dispõe, ainda sem muito empenho, a colaborar com a minha salvação, libertação, minha e do meu carro. Arranja um pedaço de cordão, que, de tão grosso, serviria para que eu me enforcasse, ou mesmo, com exagero, claro, poderia servir para guinchar o carro. Tento. Primeiro estendendo o cordão com as mãos e com um leve sorriso no canto da boca, e depois, com todas as palavras, explicar que aquela corda era para amarrar navios ao cais e não para tentar destravar a porta do carro. Ele, muito rapidamente, entende e consegue um fio ligeiramente mais fino e útil. Consigo libertá-lo, e a mim, dos grilhões de uma chave esquecida. Agradeço com poucas palavras e percebo que ele espera algo mais: que vá para o inferno. Levei mais de meia hora para soltar o carro e, se não tivesse implorado, quase de joelhos, ele não me teria ajudado. Viro as costas e sigo em direção ao elevador. A fila está maior do que da primeira vez (Será que não chegou nenhum elevador até agora?, penso), mas não consigo reconhecer nenhum dos que estavam nela naquele momento.
São quase duas horas. A sessão do cinema começa daqui a poucos minutos e eu, que tencionava comer alguma coisa antes de me divertir, acabo desistindo do rápido lanche. Sigo para o cinema. Por obra do destino, não tenho dúvida, liderada por algum arquiteto mal intencionado, tenho de cruzar a área de alimentação. Tenho e tento, é claro, mas não consigo, pois acho que a cidade inteira veio matar a sua fome neste shopping. Filas enormes em lanchonetes desconhecidas. Nas mais famosas, são grandes cobras, quilométricas diria, serpenteando a partir do caixa até, sabe lá Deus onde. Peço licença para as primeiras pessoas; por favor às seguintes para me tornar um grandessíssimo mal educado, empurrador de senhoras, crianças e marmanjos, logo depois. Um copo de refrigerante - espero que Diet - tomba de uma mesa e, este sim, suja o tênis que havia escapado de um sorvete de chocolate duas mesas antes. Procurar um guardanapo agora, nem pensar. O tênis e a calça sujos devem aguardar mais tarde para retornar às cores originais.
Chego à bilheteria do cinema às 13horas e 55 minutos: ainda dá tempo de pegar esta sessão. Dizem que o filme é muito bom, mesmo. E deve ser, pois a fila para comprar ingresso mistura-se com as filas das lanchonetes, das cafeterias, dos restaurantes. Não consigo, por mais que me esforce a encontrar a minha fila. Tento desfiar, como fôra um novelo de lã, e nada. Tento procurar uma alternativa, ou mesmo, quem sabe, um rosto conhecido para comprar o ingresso para mim, e nada. Todos os meus amigos devem estar trabalhando hoje; afinal é uma mísera e cinzenta quarta feira. No guichê um cartaz (mal) escrito à mão, me chama a atenção - afinal este era esta a sua intenção: chamar a atenção. As palavras misturam-se à raiva que sinto. “Bilhetes somente para a sessão das 18h - Não insistir”.
Mas não me deixo abater. Tenho certeza que este filme logo estará disponível nas locadoras: é só uma questão de tempo, de aguardar o lançamento, de aguardar os amigos do dono da locadora, de aguardar os que primeiro o reservarem, de conseguir a fita original com legendas - e não dublada. Faltam poucas filas para assisti-lo. Meu reino por um filme.

Luiz Carlos Godoy

Detalhes, pequenos detalhes....

Se me pedissem uma indicação para uma pessoa com gênio forte, não hesitaria em responder Nathalina. Eu a conheci muito bem. E ela também a mim. Não deixava nenhuma dúvida que eu era o seu neto preferido. Sei lá porque razão: ter sido o primeiro? ter sido seu afilhado? ser o que tinha mais paciência em ouvir inúmeras vezes a mesma história? de ver, rever e rever, sem reclamar, as mesmas fotos guardadas em caixas de papelão no seu armário. Talvez tudo isso junto e quem sabe um pouco mais.
Nasceu em Itatiaia no estado do Rio de Janeiro. Mas não se habituou ao nome da cidade. Teimava por continuar chamando-a pelo antigo, Campo Belo. Era por este último que se referia sempre que lembranças da infância lhe voltavam. E não eram poucas as vezes que isto acontecia. De maneira normal e natural os nomes de amigos do tempo do “grupo” chegavam em meio a conversas. E nos cobrava informações, como se tivéssemos a obrigação de conhecê-los e lhes saber o paradeiro.
Mentíamos muito com relação à morte de parentes distantes e afastados. Se éramos tomados de sobressalto por uma notícia do tipo “Tia Zezé morreu!” para ela a amenizávamos, com uma internação não ocorrida, uma piora constante e diária até o dia em que afinal e definitivamente matávamos e enterrávamos a “Tia Zezé”. Não sei se ela acreditava ou se nos deixava enganá-la.
Sentia um grande prazer em manter um certo matriarcado, um poder sobre a família. Gostava que nos reuníssemos à sua volta. De nos ver a todos juntos, afinal éramos tão poucos: quatro filhos e quatro netos, uma única nora. Nos últimos tempos três dos netos, já casados, ajudaram a crescer a família. Primeiro com duas novas netas e um novo neto agregados pelos casamentos e, na seqüência, com os filhos de uma nova geração que vieram para aumentar a sua prole: 3 bisnetas e um bisneto. De repente uma baixa na já pequena família: a filha mais velha descobre ter um câncer no pulmão e não resiste a três meses de doença. Esta noticia não pôde ser adiada. Um baque. Uma tristeza muito grande. Varias vezes pela manhã, dizia haver visto a filha em seu quarto durante a noite. Um fantasma a mais em seu armário. Como duvidar e como acreditar no que só ela via? Quem questionasse seria capaz de ouvir um sermão que poderia se prolongar por dias e dias.
Teimosa e majestática, como toda leonina, sentada em seu trono com todos reunidos à sua volta, mais falando do que ouvindo em função de uma surdez crescente que a ajudava a se manter alheia de tudo o que acontecia. Uma grande quantidade de lembranças ajudava a fazer com que todos ficassem ligados no que falava. Além, é claro, de ajudá-la a se manter centro de atenções.
Até os anos 80 – e seus 80 anos -, era senhora toda poderosa do espaço da sua cozinha. Ninguém podia pensar em se aproximar do “seu” fogão. Quanto mais querer descobrir suas receitas, que detinha em uma memória prodigiosa. Alguns pessoas, menos avisadas, insistiam em dar de presente livros com novidades culinárias. Só serviam para ficar guardados, pois as melhores estavam em um cantinho qualquer do seu cérebro. Pequenos segredos também, como o de deixar o pudim de leite condensado com furinhos. Este segredo demorou a ser descoberto e, pela maneira como estava guardado, parecia ser de Estado.
Em 1986 um tombo, uma bacia quebrada, um susto em todos, uma temporada no hospital. O receio de uma imobilização definitiva foi abrandado com a recuperação rápida e, para a família, inexplicável, quase um milagre. As saídas de casa, a partir de então, foram ficando mais escassas. O seu universo ficou restrito ao caminho entre o quarto, a cozinha, o banheiro e a sala. O andador a sustentava e provia uma certa liberdade e dignidade.
“Tia Nata” era como seus sobrinhos a chamavam e este acabou sendo o termo pelo qual se fez conhecida no bairro no qual viveu durante mais de 50 anos.
De herança para nós deixou muito mais do que valores financeiros e peças de arte. Um grande respeito por valores familiares e por uma hierarquia a ser rigidamente obedecida. Os mais velhos devem ser respeitados, por exemplo, é algo que nunca foi explicitamente ensinado ou cobrado, no entanto, de forma sutil, sempre foi esperado. E atendido.
Nunca gostou muito de televisão e, quando a surdez começou a aumentar, o aparelho na sala começou a ter um papel cada vez mais secundário na casa.
Dentre as manias - e não eram poucas - algumas se sobressaiam: abrir presentes com um cuidado cirúrgico para que o papel não se rasgasse; guardar o papel de presente com o mesmo carinho dado ao presente assim como os fitilhos e fitas que o embrulhasse; as imagens antigas povoavam além de sua própria memória as caixas de fotografias (“Este retrato foi tirado em Poços de Caldas em 1962”, “Esta aqui é dona Fulana de Tal, que morava aqui perto” etc.); com o tempo as fotos se tornaram objeto de nova mania: a de separar, em caixas distintas, aquelas dos que estavam ainda vivos dos que já tinham morrido.
Até o fim da vida, o hábito de ler o jornal diariamente e a curiosidade por temas que muitas vezes ficavam difíceis de explicar (qual a maneira mais conveniente de falar sobre AIDS com alguém com 90 anos?). Até o fim da vida, a leitura sendo sustentada por uma visão exemplar que dispensava óculos. Até o fim da vida, o gosto por tomar champanhe em momentos de comemoração e achar que qualquer motivo era uma boa razão para se comemorar e então: “Vamos estourar um champanhe!”. Até o fim da vida, o gosto por comidas bem temperadas e apimentadas. Até o fim da vida, quando não podia mais ir às festas de aniversários, queria ser acordada, fosse a que horas fosse, para saber de tudo e experimentar os salgadinhos e docinhos que ninguém esquecia de enviar. Deixar para o dia seguinte podia ser tarde demais. Dormir depois da festa particular poderia ser difícil, mas nada que um Sal de Frutas Eno ou um Sonrisal não resolvesse. Bebido vagarosamente. Com sabor de champanhe.
Nas manhãs, após um sono nunca reconhecido como tranqüilo, o desjejum na cama. Um ritual a ser seguido: suco de laranja (nunca o copo inteiro), meio pãozinho com manteiga, uma fatia de queijo, uma xícara – sempre a mesma xícara – de café preto, tudo no lugar certo na bandeja. Todos os dias. Invariavelmente.
Em 98 o organismo não resiste à sua própria velhice. Uma ida ao hospital não a traz de volta para casa. Com serenidade e sem consciência foi embora. Não conseguimos nos despedir dela. Ainda assim seu último desejo foi atendido: algumas pessoas não poderiam – e não foram - avisadas. Estas pessoas constavam de uma lista montada ao longo dos anos. Não os queria em seu velório nem no enterro. Os motivos foram levados em segredo por ela.
Ah, ia me esquecendo, os furinhos do pudim de leite condensado eram conseguidos com uma simples colherinha de água no momento de bater os ingredientes no liqüidificador. Simples, não?

Luiz Carlos Godoy