sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Detalhes, pequenos detalhes....

Se me pedissem uma indicação para uma pessoa com gênio forte, não hesitaria em responder Nathalina. Eu a conheci muito bem. E ela também a mim. Não deixava nenhuma dúvida que eu era o seu neto preferido. Sei lá porque razão: ter sido o primeiro? ter sido seu afilhado? ser o que tinha mais paciência em ouvir inúmeras vezes a mesma história? de ver, rever e rever, sem reclamar, as mesmas fotos guardadas em caixas de papelão no seu armário. Talvez tudo isso junto e quem sabe um pouco mais.
Nasceu em Itatiaia no estado do Rio de Janeiro. Mas não se habituou ao nome da cidade. Teimava por continuar chamando-a pelo antigo, Campo Belo. Era por este último que se referia sempre que lembranças da infância lhe voltavam. E não eram poucas as vezes que isto acontecia. De maneira normal e natural os nomes de amigos do tempo do “grupo” chegavam em meio a conversas. E nos cobrava informações, como se tivéssemos a obrigação de conhecê-los e lhes saber o paradeiro.
Mentíamos muito com relação à morte de parentes distantes e afastados. Se éramos tomados de sobressalto por uma notícia do tipo “Tia Zezé morreu!” para ela a amenizávamos, com uma internação não ocorrida, uma piora constante e diária até o dia em que afinal e definitivamente matávamos e enterrávamos a “Tia Zezé”. Não sei se ela acreditava ou se nos deixava enganá-la.
Sentia um grande prazer em manter um certo matriarcado, um poder sobre a família. Gostava que nos reuníssemos à sua volta. De nos ver a todos juntos, afinal éramos tão poucos: quatro filhos e quatro netos, uma única nora. Nos últimos tempos três dos netos, já casados, ajudaram a crescer a família. Primeiro com duas novas netas e um novo neto agregados pelos casamentos e, na seqüência, com os filhos de uma nova geração que vieram para aumentar a sua prole: 3 bisnetas e um bisneto. De repente uma baixa na já pequena família: a filha mais velha descobre ter um câncer no pulmão e não resiste a três meses de doença. Esta noticia não pôde ser adiada. Um baque. Uma tristeza muito grande. Varias vezes pela manhã, dizia haver visto a filha em seu quarto durante a noite. Um fantasma a mais em seu armário. Como duvidar e como acreditar no que só ela via? Quem questionasse seria capaz de ouvir um sermão que poderia se prolongar por dias e dias.
Teimosa e majestática, como toda leonina, sentada em seu trono com todos reunidos à sua volta, mais falando do que ouvindo em função de uma surdez crescente que a ajudava a se manter alheia de tudo o que acontecia. Uma grande quantidade de lembranças ajudava a fazer com que todos ficassem ligados no que falava. Além, é claro, de ajudá-la a se manter centro de atenções.
Até os anos 80 – e seus 80 anos -, era senhora toda poderosa do espaço da sua cozinha. Ninguém podia pensar em se aproximar do “seu” fogão. Quanto mais querer descobrir suas receitas, que detinha em uma memória prodigiosa. Alguns pessoas, menos avisadas, insistiam em dar de presente livros com novidades culinárias. Só serviam para ficar guardados, pois as melhores estavam em um cantinho qualquer do seu cérebro. Pequenos segredos também, como o de deixar o pudim de leite condensado com furinhos. Este segredo demorou a ser descoberto e, pela maneira como estava guardado, parecia ser de Estado.
Em 1986 um tombo, uma bacia quebrada, um susto em todos, uma temporada no hospital. O receio de uma imobilização definitiva foi abrandado com a recuperação rápida e, para a família, inexplicável, quase um milagre. As saídas de casa, a partir de então, foram ficando mais escassas. O seu universo ficou restrito ao caminho entre o quarto, a cozinha, o banheiro e a sala. O andador a sustentava e provia uma certa liberdade e dignidade.
“Tia Nata” era como seus sobrinhos a chamavam e este acabou sendo o termo pelo qual se fez conhecida no bairro no qual viveu durante mais de 50 anos.
De herança para nós deixou muito mais do que valores financeiros e peças de arte. Um grande respeito por valores familiares e por uma hierarquia a ser rigidamente obedecida. Os mais velhos devem ser respeitados, por exemplo, é algo que nunca foi explicitamente ensinado ou cobrado, no entanto, de forma sutil, sempre foi esperado. E atendido.
Nunca gostou muito de televisão e, quando a surdez começou a aumentar, o aparelho na sala começou a ter um papel cada vez mais secundário na casa.
Dentre as manias - e não eram poucas - algumas se sobressaiam: abrir presentes com um cuidado cirúrgico para que o papel não se rasgasse; guardar o papel de presente com o mesmo carinho dado ao presente assim como os fitilhos e fitas que o embrulhasse; as imagens antigas povoavam além de sua própria memória as caixas de fotografias (“Este retrato foi tirado em Poços de Caldas em 1962”, “Esta aqui é dona Fulana de Tal, que morava aqui perto” etc.); com o tempo as fotos se tornaram objeto de nova mania: a de separar, em caixas distintas, aquelas dos que estavam ainda vivos dos que já tinham morrido.
Até o fim da vida, o hábito de ler o jornal diariamente e a curiosidade por temas que muitas vezes ficavam difíceis de explicar (qual a maneira mais conveniente de falar sobre AIDS com alguém com 90 anos?). Até o fim da vida, a leitura sendo sustentada por uma visão exemplar que dispensava óculos. Até o fim da vida, o gosto por tomar champanhe em momentos de comemoração e achar que qualquer motivo era uma boa razão para se comemorar e então: “Vamos estourar um champanhe!”. Até o fim da vida, o gosto por comidas bem temperadas e apimentadas. Até o fim da vida, quando não podia mais ir às festas de aniversários, queria ser acordada, fosse a que horas fosse, para saber de tudo e experimentar os salgadinhos e docinhos que ninguém esquecia de enviar. Deixar para o dia seguinte podia ser tarde demais. Dormir depois da festa particular poderia ser difícil, mas nada que um Sal de Frutas Eno ou um Sonrisal não resolvesse. Bebido vagarosamente. Com sabor de champanhe.
Nas manhãs, após um sono nunca reconhecido como tranqüilo, o desjejum na cama. Um ritual a ser seguido: suco de laranja (nunca o copo inteiro), meio pãozinho com manteiga, uma fatia de queijo, uma xícara – sempre a mesma xícara – de café preto, tudo no lugar certo na bandeja. Todos os dias. Invariavelmente.
Em 98 o organismo não resiste à sua própria velhice. Uma ida ao hospital não a traz de volta para casa. Com serenidade e sem consciência foi embora. Não conseguimos nos despedir dela. Ainda assim seu último desejo foi atendido: algumas pessoas não poderiam – e não foram - avisadas. Estas pessoas constavam de uma lista montada ao longo dos anos. Não os queria em seu velório nem no enterro. Os motivos foram levados em segredo por ela.
Ah, ia me esquecendo, os furinhos do pudim de leite condensado eram conseguidos com uma simples colherinha de água no momento de bater os ingredientes no liqüidificador. Simples, não?

Luiz Carlos Godoy

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